domingo, 27 de fevereiro de 2011

Testamento do Mendigo



Agora, no fim da vida


Como mendigo que sou,


Me sinto preocupado,


Intrigado e num momento


Me pergunto, embaraçado,


Se faço ou não testamento.






Não tendo, como não tenho


E nunca tive ninguém,


Pra quem é que eu vou deixar


Tudo o que eu tenho:


os meus bens?






Pra quem é que vou deixar,


Se fizer um testamento,


Minhas calças remendadas,


O meu céu, minhas estrelas,


Que não me canso de vê-las


Quando ao relento deitado


Deixo o olhar perdido,


Distante, no firmamento?






Se eu fizer um testamento


Pra quem é que vou deixar


Minha camisa rasgada,


As águas dos rios, dos lagos,


Águas correntes, paradas,


Onde às vezes tomo banho?






Pra quem é que vou deixar,


Se fizer um testamento,


Vaga-lumes que em rebanhos


Cercam meu corpo de noite,


Quando o verão é chegado?






Se eu fizer um testamento


Pra quem vou deixar,


Mendigo assim como sou,


Todo o ouro que me dá


O sol que vejo nascer


Quando acordo na alvorada?


O sol que seca meu corpo


Que o orvalho da madrugada


Com sua carícia molhou?






Pra quem é que vou deixar,


Se fizer um testamento,


Os meus bandos de pardais,


Que ao entardecer, nas árvores,


Brincando de esconde-esconde,


Procuram se divertir?


Pra quem é que eu vou deixar


Estas folhas de jornais


Que uso para me cobrir?






Se eu fizer um testamento


Pra quem é que eu vou deixar


Meu chapéu todo amassado


Onde escuto o tilintar


Das moedas que me dão,


Os que têm a alma boa,


Os que têm bom coração?






E antes que a vida me largue,


Pra quem é que eu vou deixar


O grande estoque que tenho


Das palavras "Deus lhe pague"?






Pra quem é que eu vou deixar,


Se fizer um testamento,


Todas as folhas de outono


Que trazidas pelo vento


Vêm meus pés atapetar?






Se eu fizer um testamento


Pra quem é que vou deixar


Minhas sandálias furadas,


Que pisaram mil caminhos,


Cheias dos pós das estradas,


Estradas por onde andei


Em andanças vagabundas?


Pra quem é que eu vou deixar


Minhas saudades profundas


Dos sonhos que não sonhei?






Pra quem eu vou deixar,


Se fizer um testamento,


Os bancos dos meus jardins,


Onde durmo e onde acordo


Entre rosas e jasmins?


Pra quem é que vou deixar,


Todos os raios de luar


Que beijam minhas mãos


Quando num canto de rua


Eu as ergo em oração?






Se eu fizer um testamento


Pra quem é que vou deixar


Meu cajado, meu farnel,


e a marca deste beijo


Que uma criança deixou


Em meu rosto perguntando


se eu era Papai Noel?






Pra quem é que eu vou deixar,


Se fizer um testamento,


Este pedaço de trapo


Que no lixo eu encontrei


que transformei em lenço


Para enxugar minhas lágrimas


quando fingi que chorei?






Se eu fizer um testamento...


Testamento não farei!


Sem nenhum papel passado,


Que papéis eu não ligo,


Agora estou resolvido:


O que tenho deixarei,


Na situação em que estou,


Pra qualquer outro mendigo,


Rogando a Deus que o faça,


Depois que eu tiver morrido,


Ser tão feliz quanto eu sou.





Urbano Reis



(Este testamento foi transcrito em uma revista. Foi feito por um mendigo. Ele não tinha nada material para transmitir a alguém, mas sente-se feliz em deixar muitas coisas que o dinheiro não compra.)


Ler mais: http://www.forumespirita.net/fe/poesia/o-testamento-do-mendigo-urbano-reis/#ixzz1FCE3Z5Jw

Nenhum comentário:

Postar um comentário